‘Eu estava muito envergonhado...’

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qui, 03/08/2017

A criança na escola que é vítima de bullying, a vítima de abuso doméstico, a vítima de estupro... como podemos entender que muito frequentemente a pessoa que está no outro extremo das provocações, críticas, bullying e violência é a que se sente envergonhada? Muito envergonhada para falar, por deixar alguém saber? Como tal coisa acontece? Um observador externo diria que seria o agressor que deveria sentir vergonha e culpa. Mas porque ela é suportada tantas vezes pela vítima? Isso não faz sentido – se nós pensarmos no tal evento, nós sentimos raiva do agressor. Nós enxergamos o agressor como uma pessoa má e a vítima como a inocente do delito.

É claro que tais situações são complexas e, em muitos casos, pode-se entender que abuso gera abuso – é habitual nas nossas escolas e nos nossos locais de trabalho enxergar a vítima como a pessoa que precisa de ajuda e, muitas vezes, como o problema. Reconhecer que o valentão é o problema, e que ambos devem ser responsabilizados e entender e abordar as razões do comportamento é muito mais raro. A vítima culpa a si mesma e, muitas vezes, a sociedade reflete isso.

A culpa da vítima pode apresentar um desafio sério para aqueles que tentam curar o dano causado por qualquer tipo de abuso. Como podemos entender isso – como resolver?

O primeiro ponto pode ser esclarecido se considerarmos a situação de um bebê e de uma criança. Nós somos, de todas as espécies, os mais desamparados e dependentes dos outros humanos durante um período mais longo. Nossa sobrevivência física depende absolutamente de podermos ganhar a atenção de alguma outra pessoa, que tenha inteligência e competência para atender às nossas necessidades, e que se preocupa o suficiente conosco para fazê-lo. (O ‘comportamento para conseguir a atenção’ não merece a sua má fama – nos primeiros anos da nossa vida, nossa própria sobrevivência dependia de quão bem sucedidos nós éramos em ‘conseguir a atenção’ de alguém.)

Desde muito cedo na infância, estamos intimamente sintonizados a outros humanos que cuidam de nós. Nós aprendemos que certas formas de comportamento nos levam a conseguir a atenção e os cuidados de que precisamos, embora seja um projeto lento e de longo prazo. No entanto, em nossa impotência, nos agarramos desesperadamente a qualquer forma de comportamento que pareça ter algum efeito sobre nossos cuidadores, precisamos sentir que temos algum controle sobre o que acontece conosco. Na época em que somos bebês, começamos a desenvolver a ‘consciência’ - a consciência de que alguns dos nossos comportamentos são considerados ‘bons’ e alguns ‘maus’, com consequências positivas e negativas que podem variar de moderadas a exageradas.

Nos primeiros anos, não podemos conceituar que os nossos cuidadores possam ser incapazes de tomar conta de nós, ou que não nos amem. Se qualquer uma dessas situações existisse, nossa vida estaria realmente em perigo. A forma menos assustadora à nossa disposição para entendermos a negligência ou o abuso é a de que não fomos ‘suficientemente’ bons. Ao nos considerarmos culpados, tendo feito algo para merecer os maus tratos, nos apegamos à ilusão de que poderemos exercer algum controle – que podemos achar uma maneira de ser ‘bom’ o suficiente para ser tratado melhor. Certamente as vítimas em situações de violência doméstica, muitas vezes, dizem que tudo foi culpa delas, elas deveriam saber como se prevenir – como ser ‘boa o suficiente’ para não despertar o agressor.

A sociedade muitas vezes apoia essa perspectiva: as mulheres são culpadas de terem sido estupradas porque estavam vestindo roupas provocativas ou caminhando sozinhas à noite. Os parceiros violentos são ‘movidos’ a tomarem essas ações pelo comportamento da vítima.

Quanto mais jovem nós éramos quando tivemos essas experiências negativas, mais severas elas são, quanto maior foi o tempo que elas duraram, maior a probabilidade de que tenhamos formado crenças. A primeira, que o nosso comportamento é ‘mau’, e, depois, eventualmente, que nós somos ‘maus’ – e, muitas vezes, serão os nossos próprios agressores que nos dirão isso.

Qual é a melhor forma de ajudar os clientes que estão nessa situação, que criaram crenças sobre os eventos – o que aconteceu foi culpa deles – e crenças sobre a sua própria natureza – ‘eu sou uma pessoa má.’

A maioria das formas tradicionais de terapia, pelo menos desde os primeiros anos da psicanálise, aceitam a visão de que o nosso cliente pode ser ajudado lembrando claramente as suas experiências negativas, ‘voltando’ para elas, ‘revivendo-as’ e que, de alguma forma, nesse processo, a cura pode ocorrer. Esse tipo de prática é entendido como sendo potencialmente perigoso – o cliente pode entrar em um profundo estado emocional que pode ser assustador ou até mesmo prejudicial tanto para o cliente como para o terapeuta. Revivido com precisão, tais experiências podem gerar o mesmo nível de angústia, às vezes até a dissociação, como o próprio evento. A crença de que o evento foi culpa do cliente pode ser reforçada em vez de ser dissipada. Como fui um terapeuta praticando da forma tradicional por anos, senti que precisava ser extremamente cuidadoso para não permitir que o meu cliente ‘fosse’ para algum lugar da sua mente, em suas experiências mentais/emocionais, onde eu seria incapaz de protegê-lo. Isso poderia mascarar o significado dos eventos e problemas em vez de correr os riscos de uma reexploração potencialmente perigosa.

Esse é um ponto em que a Psicoterapia Neurolinguística adota um desvio controverso em relação ao caminho das terapias tradicionais. Em vez de convidar o nosso cliente a se re-associar a antigas memórias dolorosas, o encorajamos a se manter longe delas. A nossa primeira instrução, quando tal conversa parecer iminente, é para que o nosso cliente permaneça firmemente ancorado no presente, em seu estado adulto/pai com mais recursos. Pedimos que ele se lembre firmemente aonde está, que ele está em segurança, é um adulto, possivelmente pai (ou mãe), que tem experiência e competência para julgar e lidar com situações como um adulto independente. Chamamos a atenção dele para o ambiente físico – o que ele está vendo, ouvindo, sentindo, aqui na sala comigo, agora, nessa data e nessa estação.

Isso se baseia na área da PNL conhecida como ‘submodalidades’. Nossas mentes relacionam formas de representar as nossas experiências. Pense sobre o impacto emocional diferente ao olhar a fotografia de um evento, talvez desbotada em função dos anos decorridos desde que foi impressa – e olhando as imagens em movimento em um cinema, em uma grande tela, com um som alto por todos os lados, ampliada, brilhantemente colorida, imagens claramente focadas. Nossas imagens mentais, nossas fotografias mentais de eventos passados ​​ou esperados podem ser em preto e branco ou em cores, claramente focadas ou difusas, percebidas como grandes ou pequenas, perto de nós (‘na nossa cara’) ou mais longe. Nós falamos do ‘desvanecimento’ das memórias, de colocar os eventos ‘atrás de nós’, como uma maneira geralmente entendida para superar o impacto emocional de um evento lembrado.

Se queremos que o nosso cliente seja capaz de reavaliar uma experiência antiga, para abordá-la com um julgamento adulto em vez das reações de uma criança assustada (ou das reações de um adulto envolvido em um relacionamento complexo de amor e ódio), precisamos ajudá-lo a ‘ver’ a imagem de uma maneira diferente. Queremos que ele a reveja, não que a reviva.

Nós podemos abordar esse processo com cuidado, enquanto ensinamos o cliente a tomar consciência das diferentes maneiras que ele pode utilizar para se lembrar de eventos passados ​​e demonstrar que ele pode mudar a natureza das suas imagens mentais – você pode, mentalmente, reduzir a cor, mover a imagem para mais longe ou mais perto, aumentá-la ou diminuí-la. Da mesma forma, você pode alterar a qualidade do som em uma memória ou em seus próprios pensamentos. Você pode se lembrar ou imaginar sensações – o vento em nosso rosto, a agradável sensação ao entrar em um banho quente. Os cheiros e os gostos podem ser particularmente sugestivos – levando-o diretamente para reexperimentar um evento, por isso talvez, trabalhar com cheiros ou gostos devem estar vinculados com memórias positivas.

O trabalho das submodalidades pode, de fato, ser muito efetivo para ajudar uma pessoa a ganhar os benefícios das experiências positivas revividas, ou em proporcionar motivação para aprender coisas novas ou concluir projetos.

Ao trabalhar com a culpa da vítima, no entanto, queremos usar todos os meios possíveis para ajudar o nosso cliente a permanecer em um estado adulto, com recursos, e apenas ‘re-ver’ os eventos negativos passados, vendo o eu dele mais jovem nessas imagens – assistindo o eu dele mais jovem a partir da perspectiva de seu estado atual mais velho e mais experiente. (Às vezes, pode ser útil descobrir se o nosso cliente assiste alguma novela ou seriado específico na TV. Quando estamos assistindo esses programas, nós sempre sabemos quem são os caras bons e os maus, quando tudo vai se resolver ou vai acabar em lágrimas. Esse estado, de pleno conhecimento e de evidente julgamento, pode ser exatamente o que o nosso cliente precisa e, muitas vezes, pode ser suficientemente simples como a sugestão de que ele imagine que o evento negativo passado é um episódio da sua novela preferida.)

No meu trabalho, eu trato de reduzir as submodalidades, sugerindo que o meu cliente, uma vez firmemente ‘ancorado’ em seu estado atual e adulto, comece a ‘assistir’ os eventos passados problemáticos como se eles estivessem sendo exibidos em uma TV pequena, do outro lado da sala, apenas grande o suficiente para ver o que está acontecendo. Isso ajuda a garantir que a imagem seja pequena, distante e tenha uma borda em torno dela, mostrando o self mais jovem do cliente na imagem, a idade que ele tinha – e o tamanho – quando os eventos negativos ocorreram. Essas submodalidades, inclusive sendo dissociadas da memória, em vez de ‘dentro’ dela, tenderão a reduzir a emoção despertada pela memória. O que queremos é que o nosso cliente tenha os sentimentos que qualquer um que assistisse a esses eventos teria – simpatia pela vítima, raiva do agressor. A pergunta a ser feita é ‘como você se sente em relação ao ‘você’ naquela memória?' E 'quem’ é o responsável pelo que está acontecendo lá? Quem tem o poder? Existe alguma coisa que o 'você' nesse evento poderia ter feito para mudar o que estava acontecendo? Quem deveria estar se sentindo culpado por isso?

É muito importante ao longo desse processo prestar muita atenção ao seu cliente. As coisas geralmente não são diretas e você, como terapeuta, não pode assumir que as coisas assumirão uma maneira particular. Você precisa esperar pelos sinais de que o seu cliente está se associando ao evento e que fica perturbado por causa disso – você pode ter que relembrá-lo de que ele está no presente, na sala com você, seguro e muito bem. Também o evento ou os eventos em si podem ser mais complexos do que foram retratados. Se houver algum elemento para o qual a autocrítica seria apropriada, seria importante validar isso – se tal realidade for reconhecida, ela pode realmente facilitar o nosso cliente a separar a culpa adequada de uma culpa inadequada. (Se o seu cliente foi infiel ao seu parceiro, ele ou ela tem justificativa de estar com raiva, mas não violento. Se, por outro lado, o seu cliente foi espancado por ter chegado em casa dez minutos depois da hora marcada, então a culpa não é adequada.)

A acuidade sensorial é praticamente a primeira coisa ensinada nos cursos de PNL, e uma apurada percepção das pequenas alterações na cor da pele, de pequenos movimentos, dos elementos da expressão facial, tudo isso irá ajudá-lo a observar atentamente os pontos que podem ser importantes verificar com o seu cliente sobre o que está acontecendo com ele.

Quando o seu cliente olhar para o evento e concluir que ele pode ver que o eu dele mais jovem não foi responsável e se sentir adequadamente compreensivo, bem como adequadamente irritado com o agressor, então um importante primeiro passo foi tomado, quando você o convida para experimentar e explorar inteiramente as implicações desses novos sentimentos e julgamentos.

O artigo original ‘I Was Too Ashamed...’ encontra-se no site Positive Health

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